A hiper-discrepância entre princípios e práticas
A discrepância entre princípios e práticas é talvez a maior especificidade da modernidade ocidental.
- Qualquer que seja o tipo de relações de poder (capitalismo, colonialismo e patriarcado) e os campos do seu exercício (político, jurídico, econômico, social, religioso, cultural, interpessoal),
- a proclamação dos princípios e dos valores universais tende a estar em contradição com as práticas concretas do exercício do poder por parte de quem o detém.
O que neste domínio é ainda mais específico da modernidade ocidental é o fato de essa contradição passar despercebida na opinião pública e ser mesmo considerada como não existente.
Domenico Losurdo lembra-nos que os primeiros presidentes dos EUA, e nomeadamente os grandes ideólogos e protagonistas da revolução norte-americana (George Washington, Thomas Jefferson e James Madison), eram donos de escravos.
Na lógica do liberalismo não havia contradição alguma.
- Os princípios universais da liberdade, igualdade e fraternidade eram aplicáveis a todos os seres humanos e só a eles.
- Ora os escravos eram mercadorias, seres sub-humanos.
Contradição existiria se a eles fossem aplicados os princípios apenas aplicáveis aos seres plenamente humanos.
Este mecanismo de supressão das contradições reside no que designo por
- linha abissal, uma linha radical que desde o século XVI divide a humanidade em dois grupos:
- os plenamente humanos e os sub-humanos,
- sendo estes últimos o conjunto dos corpos colonizados, racializados e sexualizados.
Se é verdade que a contradição entre princípios e práticas sempre existiu, ela é hoje mais evidente do que nunca.
Saliento quatro áreas em particular:
- o Ocidente na nova guerra fria;
- o crescimento global da extrema-direita;
- a luta contra a corrupção;
- a captura de bens públicos, comuns ou globais por atores privados.
Nesta crônica refiro as duas primeiras.
O Ocidente na nova guerra fria
As potências rivais na nova guerra fria são os EUA e a China, sendo que cada um deles conta com um aliado de peso, a União Europeia, no caso dos EUA, e a Rússia, no caso da China.
Tenho defendido que a rivalidade real é entre duas economias-mundo profundamente interligadas, mas com interesses de curto e médio prazos opostos:
- a economia-mundo do capitalismo das empresas multinacionais promovida pelos EUA
- e a economia-mundo do capitalismo de Estado promovida pela China.
Como se sabe, não é assim que a rivalidade se apresenta na opinião pública internacional controlada ou influenciada pelos EUA.
A rivalidade é apresentada como ocorrendo
- entre regimes democráticos e regimes autoritários,
- entre a superioridade moral dos valores cristãos ocidentais do individualismo, da tolerância, da liberdade e da diversidade e os extremismos religiosos e ideológicos do Oriente.
Esta formulação não deixa de ser intrigante.
- Ao longo de muitos séculos, os impérios ocidentais justificaram-se com valores universais que idealmente poderiam e deveriam ser adotados por todos os países do mundo.
- O império norte-americano foi o que levou mais longe este expansionismo ideológico através do conceito de globalização e da doutrina do neoliberalismo.
- Esse expansionismo foi em boa parte responsável pela rápida integração da China na economia mundial e nas organizações internacionais.
Basta recordar a deslocalização de boa parte da produção industrial dos EUA para a China nos últimos trinta anos.
A lógica era, pois, a da construção de um mundo globalizado, integrado no capitalismo multinacional e servido pelo capitalismo financeiro global ciosamente controlado por empresas norte-americanas.
Houve, sem dúvida, vozes discordantes, como a de Samuel Huntington no seu livro de 1996 sobre o choque das civilizações,
- em que se chamava a atenção para a futura ameaça de conflitos religiosos entre o judaísmo e o cristianismo, por um lado,
- e o islamismo, o budismo e o hinduísmo, por outro,
- e para a entrada em ação de atores não estatais.
Esta tese
- só veio a adquirir maior aceitação depois do ataque às Torres Gêmeas de Nova Iorque em 11 de setembro de 2001,
- mas não alterou em nada a cooperação econômica com a China que continuou a aprofundar-se e a diversificar-se.
Só em tempos recentes é que a China começou a surgir como o grande inimigo a abater ou a neutralizar.
A contradição reside
- entre o expansionismo globalizador das ideias no período ascendente do império norte-americano e a defesa do excepcionalismo ocidental, da especificidade ética do Ocidente
- contra um Oriente ameaçador.
O paradoxo pode formular-se assim:
- a hegemonia ocidental consistiu em levar a globalização e o capitalismo a todo o mundo como prova da superioridade do Ocidente.
- E agora, que países não ocidentais adotaram a globalização e a promoveram segundo os seus próprios interesses,
- o Ocidente recua no seu impulso globalizante e entrincheira-se na defesa de uma especificidade ético-religiosa
- que mal disfarça a constatação de ter sido ultrapassado pelos países que seguiram com êxito a sua receita.
O Ocidente globalizado defende-se agora enquanto Ocidente localizado, o que não deixa de ser uma prova de declínio à luz dos critérios que o próprio Ocidente impôs ao mundo a partir do século XVI.
Lembremos que
- os povos indígenas da América Latina, ao defenderem os seus territórios e as suas riquezas contra os colonizadores,
- eram considerados pelo grande internacionalista espanhol do século XVI, Francisco de Vitória, como violadores do direito humano universal do livre comércio.
O crescimento global da extrema-direita
Esta contradição entre princípios e práticas – o sempre presente expediente de adaptar os princípios ao que é considerado mais conveniente ou útil pelas necessidades práticas do momento – tem na extrema-direita uma formulação particular.
Tenha-se em mente que o crescimento da extrema-direita, apesar de ser um movimento global, assume especificidades muito acentuadas em diferentes contextos e países.
Penso, no entanto, que os seguintes traços são bastante comuns.
* Por um lado,
- parece levar a contradição ao extremo ao defender no plano econômico o mais extremo individualismo neoliberal,
- enquanto no plano político, social e comportamental impõe um moralismo e um autoritarismo que mal se coadunam com a autonomia individualista.
* Por outro lado,
- detona a própria contradição entre princípios e práticas
- e justifica o poder cru das práticas ao demonizar os próprios princípios universais.
É nesta última dimensão que a extrema-direita se afirma como corrente reacionária e não simplesmente conservadora.
É que
* enquanto os conservadores defendem os princípios do Iluminismo na formulação que lhes deu a Revolução Francesa (liberdade, igualdade e fraternidade), ainda que privilegiem o princípio da liberdade,
* os reacionários da extrema-direita recusam esses princípios e coerentemente
- defendem o colonialismo, a inferioridade de negros, indígenas, mulheres e ciganos;
- justificam o trabalho análogo ao trabalho escravo;
- recusam ver nos povos indígenas e afrodescendentes outra coisa que não comunidades de sub-humanos a ser assimilados ou eliminados;
- boicotam a democracia inclusiva e pretendem instaurar ditaduras ou, quando muito, democracias que se restrinjam a “nós” e imponham a servidão aos “outros”;
- recusam a ideia do monopólio da violência legítima por parte do Estado e promovem a distribuição e venda de armas à população civil.
À luz do que referi atrás, não surpreende, embora nem por isso seja menos perturbador, que uma das principais centrais de difusão da ideologia de extrema-direita esteja sediada nos EUA e que seja neste país que mais grupos de extrema-direita existem com mais influência sobre grupos similares noutras partes do mundo.
O poder cru e a democracia
A prevalência e a maior visibilidade do poder cru sobre o poder cozido – o crescente apelo à eliminação do inimigo interno e a hiper-discrepância entre princípios e práticas – representam um decisivo desafio para a democracia.
A democracia liberal foi sempre uma das expressões fundamentais do poder cozido nas sociedades capitalistas, colonialistas e patriarcais.
- Foi por isso que a democracia liberal se reduziu ao espaço público,
- deixando todos os outros espaços de relações sociais, tais como a família, a comunidade, a empresa, o mercado e as relações internacionais,
- entregues ao poder mais ou menos despótico do mais forte a que chamei fascismo social.
Daí a minha conclusão de que,
- enquanto existirem capitalismo, colonialismo e patriarcado,
- estaremos condenados a viver em sociedades politicamente democráticas e socialmente fascistas.
Atente-se, porém, que, apesar de limitada, a democracia liberal não é uma ilusão.
Sobretudo nos últimos cem anos, a existência de democracia no espaço político possibilitou
- a adoção de políticas públicas de proteção social (saúde, educação, previdência pública) e direitos trabalhistas, sociais, e culturais
- que se traduziram em conquistas importantes e em melhorias de vida concretas para as classes populares e grupos sociais sujeitos à dominação capitalista, racista e sexista.
Por outras palavras, no seu melhor, a democracia liberal tem permitido diminuir a brutalidade do poder cru do fascismo social.
A prevalência atual do poder cru traz consigo um péssimo presságio e um enorme desafio para a democracia liberal.
Na raiz do poder cru contemporâneo
- estão o neoliberalismo e a extrema-direita,
- uma mistura tóxica que está a atingir o âmago da democracia liberal, os direitos cívicos e políticos,
- depois de ter reduzido ao mínimo a proteção social e os direitos sociais.
É um processo de destruição da democracia, por vezes lento por vezes rápido, que vai injetando componentes e lógicas ditatoriais na prática concreta dos regimes democráticos.
Um novo tipo de regime político está a emergir, um regime híbrido que combina
- discursos e práticas ditatoriais (apologia da violência, criação caótica e oportunista de inimigos, insulto impune dos órgãos de soberania eleitos, desobediência ativa de decisões judiciais, apelo à intervenção golpista das forças armadas)
- com práticas democráticas.
Um monstro? Uma coisa é certa: a democracia liberal não é a democracia real, mas é uma condição necessária (ainda que não suficiente)