‘Warmed-up Marxism’, “Marxismo requentado”: foi assim que o Wall Street Journal qualificou a Populorum Progressio, a encíclica de Paulo VI sobre o desenvolvimento, publicada exatamente 50 anos atrás. Que citando São Tomás e Santo Ambrósio falava também de expropriações e de luta armada
Tradução: Orlando Almeida
Era domingo de Páscoa, aquele 26 março 1967. Dia em que o Papa Paulo VI anunciou ao mundo a encíclica Populorum Progressio.
O documento papal, de que hoje se celebram cinquenta anos de publicação, expressava uma visão profética do estado das coisas do mundo, exatamente porque se inspirava nas fontes da Tradição e dos Padres da Igreja. E era exatamente isso que lhe consentia desempatar o jogo. Ter em conta os condicionamentos e os posicionamentos pré-estabelecidos do poder do mundo, sem deixar-se absorver por eles.
Na atmosfera estagnada da guerra fria, o Papa, em vez de dividir o mundo entre Oriente e Ocidente, entre comunistas e democratas, ousou afirmar que a verdadeira cortina de ferro era a que dividia o Norte do Sul do mundo, os “povos da opulência” dos “povos da fome”.
Assim, com uma simples constatação, quebrava, mesmo sem o querer, um tabu importante para os guardiões dos equilíbrios de poder então existentes: o do Papa capelão do Ocidente, da Igreja alinhada com a frente capitalista. Naquele tempo, para influentes círculos católicos do Ocidente, o simples falar do capitalismo como “fonte de tantos sofrimentos”, como fazia a encíclica, equivalia a pular o fosso, a negociar com o inimigo.
Uma encíclica “francesa”
Paulo VI tinha pensado desde o início de seu Pontificado em uma encíclica sobre os perdedores da modernidade. Andava recolhendo documentos e arquivos numa pasta com um longo título. A inspiração próxima, como explica no parágrafo 4, veio-lhe das viagens à África, Ásia e América Latina, feitas por Montini primeiro como arcebispo de Milão e depois como papa, durante as quais “podemos ver com os nossos olhos, tocar com a mão, as gravíssimas dificuldades que assaltam povos de civilização antiga, a braços com o problema do desenvolvimento”.
Na Ásia e na África, países que acabavam de sair do colonialismo procuravam tirar proveito da guerra fria para aumentar o preço da sua fidelidade a um dos dois antagonistas.
Na América Latina, assistia-se às primeiras manifestações do choque dos regimes ditatoriais de “segurança nacional” com a oposição popular e as guerrilhas marxistas.
Para Paulo VI, a pedra angular da questão social, naquele momento histórico, era a do desenvolvimento. Paulo VI recuperou no novo contexto, a “neutralidade política” da Igreja já prefigurada também por Pio XII na radiomensagem do Natal de 1951. A velha questão social tinha assumido dimensões globais.
Onde antes estavam o proletariado e a classe trabalhadora, em meados dos anos sessenta encontravam-se povos inteiros famintos do sul do mundo.
No texto Paulo VI derramou toda a sua sensibilidade cultural. A lista de citações de escritores contemporâneos – novidade para uma encíclica papal – inclui autores franceses caros a Montini:
- o filósofo Jacques Maritain,
- os teólogos do concílio Marie Dominique Chenu e Henri de Lubac.
- O inspirador das passagens mais pragmáticas foi o dominicano bretão Louis Lebret, personagem anômalo e vulcânico, daqueles que ainda podiam ser achados na Igreja daquele tempo: ex-oficial da Marinha, tinha visto de perto as misérias dos povos da fome, e como dominicano tinha criado movimentos e grupos de pesquisa que utilizavam também as novas ciências sociais para tentar sugerir soluções concretas para as emergências sociais.
Devem-se a ele as passagens que denunciavam com competência técnica os mecanismos financeiros que na época derrubavam as economias dos países em desenvolvimento.
Na companhia de Ambrósio e Tomás
Mas as passagens mais eficazes são aquelas em que Paulo VI aplica à nova situação os conteúdos da Tradição, a começar pelos Padres da Igreja. Cita o De Nabuthae de Santo Ambrósio, para repropor a tradicional “hipoteca social” sobre a propriedade privada.
Assim
- desmonta o novo dogma da propriedade privada inviolável
- e deduz, também com base nos escritos do santo bispo de Milão, a legitimidade de medidas como a expropriação, precisamente nos anos em que a questão estava mais incandescente devido às lutas entre fazendeiros e camponeses miseráveis na América Latina.
Reconhecendo que “o bem comum às vezes exige a expropriação” quando certas posses,
- por sua extensão excessiva,
- e em situações de pobreza generalizada,
- são de maneira óbvia “um obstáculo para a prosperidade coletiva”.
Retoma também a fórmula mais dura e crua da encíclica Quadragesimo Anno do Papa Pio XI, para condenar “o imperialismo internacional do dinheiro”.
Recorre a termos da análise marxista para denunciar o neocolonialismo (“pressões políticas e do poder econômico, exercidas com a finalidade de defender ou conquistar uma hegemonia dominadora”).
Lança, já então, o alarme sobre
- as derivas tecnocráticas (“a tecnocracia de amanhã pode ser fonte de males não menos temíveis do que o liberalismo de ontem”)
- e sobre a retórica hipócrita do “livre comércio”
utilizada para tornar crônicas as relações de força entre o Norte e o Sul do mundo, jogando sujo nos preços das matérias primas.
Com a linguagem da teologia católica mais consolidada, Paulo VI também
- encara a possibilidade histórica de que a raiva pela injustiça e pela exploração possa provocar insurreições violentas: a avareza obstinada dos ricos não poderá senão suscitar “o julgamento de Deus e a cólera dos pobres, com consequências imprevisíveis” (n.49).
- A insurreição armada, embora indicada como fonte de novas injustiças e ruínas, é justificada “no caso de uma ditadura prolongada que atente gravemente contra os direitos fundamentais da pessoa e prejudique de forma perigosa o bem comum do país”.
A mesma possibilidade já tinha sido reconhecida e justificada, nos mesmos termos, por São Tomás na Summa Theologica.
Assim, citando São Tomás e os Padres da Igreja, Paulo VI quebrava o dogma cultural dos tempos modernos segundo o qual a defesa da Tradição, na Igreja, deveria coincidir necessariamente com uma visão cultural e política “de direita”. O Papa lombardo repetia que a preferência pelo pobre, até nas suas consequências “subversivas”, é uma escolha de Deus, inscrita no mistério da sua predileção.
Papa “maoísta”
“Warmed up Marxism” marxismo requentado. Assim foi liquidada a encíclica de Montini pelo Wall Street Journal. Também para Time, algumas partes do documento papal tinham “o tom estridente de uma polêmica marxista do começo do século”.
Seguindo na esteira dos grandes jornais de Além-mar, a imprensa italiana de direita também relançou o espantalho do Papa “vendido aos comunistas”.
O jornal romano Il Tempo falou de “pastoral da pregação substituída pela espada ou cimitarra da ação da insurreição ou da guerrilha”, sustentando que “a tese da divisão do mundo em países do Norte industrializados, imperialistas, egoístas, exploradores e países do Sul atrasados, explorados e camponeses, é própria de Mao e da China Popular”.
De qualquer forma – acrescentava o jornal romano – não havia nada por que se preocupar porque, apesar das palavras do Papa, “setores muito amplos, influentes e poderosos, da Igreja católica militam do lado do lucro, possivelmente absolutos e exclusivos, do lado do mundo industrializado e avançado”.
O semanário satírico Il Borghese, num artigo intitulado “Avanti populorum alla riscossa” [Avante ‘populorum’, à reconquista]* afirmou que o Bispo de Roma tinha feito seu “todo o lixo anti-liberal e anti-burguês”.
Ao passo que o Corriere dela Sera minimizou, salientando que na realidade o “capitalismo deplorado na encíclica não existe mais”.
Por seu turno, a agência soviética Novosti reconheceu que “a Populorum progressio contém talvez as palavras mais duras ditas sobre o capitalismo desde quando Jesus expulsou do templo os usurários e os cambistas”, acrescentando, com uma nota de política eclesiástica, que “dificilmente a nova encíclica vai agradar ao cardeal Spellman, para o qual servir a Deus significa estar ao serviço da política americana”.
Mas os comentários críticos não vieram só da direita. Também a imprensa burguesa iluminada disparou contra a encíclica dos pobres.
A revista Epoca deu a um seu artigo o título de “Populorum Progressio, Ecclesiae regressio” (Progresso dos Povos, Regressão da Igreja - NdR.)
Enquanto que o líder dos vaticanistas da época, Carlo Falconi, do semanário Espresso, contrapôs à encíclica os textos sociais do Papa Roncalli, criticando também os “centros paroquiais equipados com cinemas, campos esportivos e bares”, identificados por ele como “a trave no olho” da Igreja.
Eram os primeiros sinais do que, nos anos seguintes, se tornaria o autêntico linchamento sofrido pelo Papa Montini da parte dos mais poderosos meios de manipulação da opinião pública ocidental.
Por outro lado a recepção mais entusiástica da encíclica foi registrada em países em desenvolvimento e nas Igrejas desses países.
Na Tanzânia, o presidente Julius Nyerere escreveu a “Declaração de Arusha”, a Magna Carta do socialismo Africano, inspirando-se na encíclica de Montini.
E em agosto de 1968, em Medellín, a segunda Conferência Geral do episcopado da América Latina, inaugurada na presença do Papa Paulo VI, realizou-se todo à sombra da Populorum Progressio, que no documento final foi citada 28 vezes.
Gianni Valente
* Avanti o popolo alla riscossa … são as primeiras palavras de
Bandiera rossa, uma canção popular tradicional dos trabalhadores italianos de matriz comunista e socialista, fazendo referência à ‘bandiera rossa’ (bandeira vermelha), emblema dessas ideologias (fonte:web).
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