terça-feira, 19 de dezembro de 2017

JESUS NASCEU PARA DESCRUCIFICAR

Porque será mantida a cruz como símbolo cristão, quando o que Jesus procurava era, precisamente, descrucificar?
Frei Bento Domingues, O.P.-16/12/17
1. Estamos na quadra litúrgica do Advento, mas tudo parece encenado e polarizado apenas pela memória do nascimento de Jesus, alimentando um terno imaginário da infância,
  • com alguma e passageira solidariedade, própria da estação,
  • sem, no entanto, tocar nos alicerces da sociedade.
  • É como se nada estivesse para acontecer.
Os textos das celebrações do Advento vão, pelo contrário, noutra direcção:
  • é hoje que podemos acolher a graça da nossa transformação interior
  • que nos associe, de forma activa, às mais diversas iniciativas sociais, culturais e políticas
  • da construção de uma cultura da justiça e da paz, a nível local e global.
O Espírito do Natal é Aquele que suscitou o canto subversivo de Maria de Nazaré.
As preocupações com as indispensáveis reformas das “cozinhas eclesiásticas” da Igreja,
  • se não estiverem centradas no estilo da prática história de Jesus Cristo
  • e nas urgências dos mais carenciados das nossas sociedades,
acabam por nos fazer esquecer que somos nós, a Igreja, que precisamos de reforma permanente.  
Frederico Lourenço – a grande figura portuguesa da cultura bíblica fora das sacristias – recorda-nos que os Evangelhos têm, ainda hoje, em 2017, o potencial para mudar o mundo para radicalmente melhor. Sublinha comovido:
“Jesus Cristo, com as palavras que lhe são atribuídas nos quatro evangelhos, é a figura que mais me interessa. Continuo a achar que, independentemente de ele ter dito aquelas palavras ou não, elas são as coisas mais extraordinárias que foram ditas à face da terra. Por exemplo, quando leio para mim o Novo Testamento estou num mundo maravilhoso que é só meu e me preenche muito, animicamente, espiritualmente. Apesar de ser um linguista crítico-histórico, não sou um ateu a traduzir a Bíblia. Serei sempre, até ao último segundo da minha vida, um apaixonado por esse judeu chamado Jesus de Nazaré”[1].
Muitos anos antes, numa entrevista de 1978, Eduardo Lourenço mostrou a verdade da nossa condição, na própria referência cristã: “Cristo é o momento (sem limite de tempo) em que a humanidade tomou forma humana. (…) Foi crucificado, não por querer ser deus, mas por ensinar o que era ser homem. Dois mil anos passaram sem que esquecêssemos nem aprendêssemos a lição”[2].
Num belo livro, traduzido por José Sousa Monteiro, deparo com a confissão do marxista Milan Machovec:
“O coração duma freira desconhecida que se dedica a uma criança incurável, só poderia ser substituída por uma teoria da história, por um estúpido e um idiota (…) Pessoalmente, não me traria grande desgosto o facto da religião acabar. Mas se tivesse de viver num mundo no qual Jesus fosse inteiramente esquecido, então preferia não continuar a viver”[3].
Como escreveu o dominicano E. Schillebeeckx, para Jesus, a história dos seres humanos é a narrativa de Deus acolhido ou recusado[4].
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2. Para o imaginário do Evangelho de S. Lucas, a festa do nascimento de Jesus aconteceu
  • num curral iluminado pela luz do céu,
  • acompanhada pela música dos anjos
  • e rodeado de pastores e estrangeiros.
Tudo aconteceu à margem do Templo de Jerusalém e dos palácios imperiais. Aliás, Jesus com o comércio do Templo teve uma relação muito agreste e só conheceu os palácios quando estava a ser julgado e condenado à pena capital. A sua coroa foi de espinhos e o seu trono foi uma cruz.
Esta apresentação testemunha um profundo contraste, mas pode cair na perversão do próprio Evangelho de Cristo, sugerindo que Jesus
  • veio sacrificar-se
  • e semear mais sacrifícios no mundo.
Porque será mantida a cruz como símbolo cristão, quando o que Jesus procurava era, precisamente, descrucificar?
A minha hipótese de interpretação é outra, bastante simples, mas que importa explicar. A cruz, a sentença de morte mais bárbara e cruel, fazia parte do mundo que Jesus queria mudar. Então, por que continua a funcionar como um símbolo cristão, quando ela é anti-humana, anticristã?
Ao contrário do que se repete há séculos, Jesus Cristo não desejou nem santificou a cruz. Alterou-lhe, porém, a significação de forma radical. Foi-lhe imposta, num julgamento iníquo, por ele recusar trair o seu projecto. Tornou-se, deste modo, o símbolo da fidelidade inquebrantável, o signo da extrema generosidade. A presença de sinais da cruz, desde o baptismo até à morte, diz que é preciso dizer não à crucifixão da vida e dizer sim à generosidade libertadora, no dia-a-dia.
Tudo isto vem confirmado no trecho do Evangelho escolhido para a celebração da Eucaristia, do passado dia 6: estava Jesus sentado junto ao mar da Galileia e uma grande multidão veio ter com ele e lançou-lhe, aos pés, coxos, aleijados, cegos, mudos e muitos outros[5].
Se o mestre fosse um pregador de sacrifícios dizia-lhes: estais mal? Ainda bem. Assim podeis santificar-vos e, um dia, sereis muito felizes no céu.
  1. Jesus não acreditava nessa mística. Curou-os e organizou, com pouca coisa, um grande banquete popularA multidão ficou admirada ao ver os mudos a falar, os aleijados a ficar sãos, os coxos a andar, os cegos a ver e todos a comer até sobrar.
Poder-se-á dizer: porque não deixou a fórmula? Seria uma alternativa muito barata dos serviços de saúde, públicos e privados. Mas ele não veio para nos substituir.
Já na apresentação do seu programa, em Nazaré, ficou claro que o mundo tinha de começar mesmo a mudar. Deus não podia ser o da ira de Iavé, mas o da pura graça do amor. Diz a narrativa evangélica que, nesse momento, os seus conterrâneos o julgaram um subversivo e, por isso, quiseram acabar logo com ele[6].
Os seus comportamentos eram, de facto, estranhos: andava em más companhias, com quem comia e bebia, a ponto de lhe chamarem “comilão e beberrão”; aceitou o convívio de mulheres que não eram todas exemplos de virtude; violava, sistematicamente, o Sábado – o dia mais sagrado da sua religião – com curas que bem podia fazer noutros dias[7].
Não deixou fórmulas ou receitas que pudessem ser transformadas em rituais. A sua prática é um desafio à imaginação de todos os homens e mulheres, de todos os tempos, a usarem os seus talentos, as suas capacidades, não para cavar distância entre ricos e pobres, mas para as eliminar, pois, não suporta ver uns à porta e outros à mesa, uns em banquetes requintados e outros na miséria[8].


Frei Bento Domingues

quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

NÃO MAIS O DEMÔNIO...

Em busca de Jesus de Nazaré

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 Eduardo Hoornaert -3/12/17
 Faz um ano e alguns meses que publiquei pela Paulus o livro ‘Em busca de Jesus de Nazaré: uma análise literária’.
Gostaria de tecer aqui algumas considerações em torno de comentários que recebi acerca desse livro.
1. A primeira coisa que tenho a dizer é que se trata de um trabalho inconcluso, provisório. Não só porque aí me limitei a trabalhar com três escritores,
  • Paulo,
  • o anônimo da Carta aos Hebreus
  • e Marcos, ou seja,
com a primeira literatura da tradição cristã, situada entre os anos 50 e 70 e deixei de lado os Evangelhos de Mateus, Lucas ou João, mas também porque meu livro nem de longe se compara com dois livros recentemente publicados:
  • ‘Zelota’, de Reza Aslan, publicado pela Zahar do Rio em 2011
  • e Jesus, aproximação histórica’, do sacerdote católico J.A. Pagola, publicado pela Vozes de Petrópolis em 2010.
Dois livros admiráveis, eu diria necessários e por enquanto não superados, pelo menos no que sei sobre o assunto.
  • Enquanto Aslan trabalha a fundo, baseado em estudos de vinte anos, a dimensão política da ação de Jesus,
  • Pagola revela aspectos importantes da ação de Jesus, pouco comentados na literatura corrente, como por exemplo a crise entre João Batista e Jesus (capítulo 3: buscador de Deus).
Penso que esses dois livros constituem leitura obrigatória para quem quiser hoje se aprofundar no conhecimento de Jesus numa visão história.
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2. Se meu livro contém alguma originalidade, é no método utilizado, como consta no subtítulo: ‘uma análise literária’.
Deixe-me explicar em poucas palavras o que entendo com isso. A convicção da necessidade de submeter os evangelhos a uma análise literária que só me veio por volta do ano 2000, quando eu já tinha 70 anos. Eis como se passaram as coisas comigo. Em 1975, Michel de Certeau, jesuíta francês, passou por Recife e se encontrou conosco durante três dias.
A questão, para nosso pequeno grupo de pastoralistas, era a religiosidade popular e nosso visitante, num determinado momento, disse, como de passagem: ‘se você quiser entender o discurso do povo, leia Wittgenstein’. Essa frase ficou 25 anos anotado em meus apontamentos, sem que lhe desse importância.
Em 2000, pensando em escrever sobre Jesus numa perspectiva histórica, me dei conta que os evangelhos são ‘discursos do povo’. Aí me meti a ler Wittgenstein, durante três anos.
Ele é, com outros famosos filósofos do século XX (Foucault, Chomsky, Ricoeur, Bakhtin), um linguista. A obra principal de Wittgenstein (Investigações filosóficas, Vozes, Petrópolis, 2005, 4a ed.) se apresenta como um álbum de 693 aforismos aparentemente desconexos, frases soltas, uma ‘paisagem variada’ de considerações em torno do conhecimento.
Wittgenstein tem algumas metáforas que esclarecem o que ele pensa acerca do tema.
  • Ele compara as pessoas a moscas dentro de uma garrafa aberta. Voam de lá para cá sem encontrar a saída.
  • Numa outra imagem, ele as compara a pessoas que andam perdidas num labirinto. Há uma saída, mas as pessoas não a encontram.
  • O filósofo usa também a imagem da neblina: as pessoas não enxergam com clareza de que se trata quando ouvem discursos. Ficam andando para lá e para cá.
  que a maioria dos discursos são produzidos para enganar as pessoas e as meter dentro da garrafa, do labirinto, da neblina (isso foi escrito nos anos 1940 e encontra plena confirmação em nossos dias). Daí o subtítulo de meu livro: ‘uma análise literária’.
Basicamente um trabalho de aprendiz, discípulo tardio de Wittgenstein. Ao descrever aqui como foi meu caminho,
  • não quero dizer que precisa seguir algum filósofo linguista para entender os evangelhos,
  • mas, isso sim, que precisa ‘dissipar a neblina’, ‘sair da garrafa’, ‘encontrar a saída do labirinto’.

3. Atualmente, a bíblia é um labirinto para muitos, um mundo de errâncias confusas, para lá e para cá, em textos e citações, sem saída. O pregador retira um texto de seu contexto e o comenta a seu entender. As pessoas vão para casa com alguma frase na cabeça, uma citação bíblica, uma ‘palavra de Deus’. Mas permanece a neblina que não se dissipa. É o fundamentalismo. Meu livro é antes de tudo uma alerta diante o perigo fundamentalista.
 Como escrevi na apresentação do livro, dirigida à editora, já em 2015: ‘A curto ou médio prazo, o tema do fundamentalismo entrará na agenda daquelas igrejas cristãs que manifestem uma responsabilidade mínima no tocante à boa orientação de seus fiéis. O que se verifica hoje é uma maré de interpretações irresponsáveis e injustificadas da bíblia, que ameaça inundar por inteiro os campos confessionais e transformar o cristianismo num movimento entregue a interesses particulares. 


Há de se estabelecer algumas regras básicas de interpretação de textos bíblicos, que respeitem
  • o contexto em que esses mesmos textos foram redigidos,
  • assim como as intencionalidades próprias de seus escritores e as culturas dentro das quais se formam os discursos.
Existe uma diferença fundamental entre
  • uma interpretação bíblica totalmente à toa, que parece estar em voga hoje,
  • e uma interpretação que, de qualquer modo, se assenta em análises literárias e históricas justificadas. 
Neste ensaio de análise literária dos três primeiros escritos do movimento de Jesus se apresentam algumas pistas de leitura justificada, que eventualmente podem servir para a leitura de textos bíblicos em geral’.
 
4. Termino essas considerações com um pequeno exercício em análise literária. Proponho que leiamos um trecho do capítulo 12 do Evangelho de Lucas, considerado difícil por muitos exegetas. Lembro que uma análise literária implica no reconhecimento da cultura dentro da qual um discurso é pronunciado. Ora, nas culturas semitas do tempo de Jesus, as pessoas acreditavam que ‘sopros malvados’ ou ‘sujos’, demônios, forças do inferno, etc. atormentavam as pessoas, causando doenças e sofrimentos.
Se Jesus aparece, nos evangelhos, como um bem-sucedido exorcista e milagreiro, é dentro desse enquadramento cultural. No texto que estamos examinando, Jesus exclama:
eu vim derramar fogo sobre a terra e gostaria tanto que pegasse logo. Tenho de ser batizado num (novo) batismo e me atormento, pois não vejo a hora disso acontecer. Vocês pensam que vim trazer a paz sobre a terra? Nada disso. Eu trago a desunião. Doravante, se cinco pessoas moram numa casa, elas estarão divididas, três contra duas ou duas contra três. Pai contra filho e filho contra pai, mãe contra filha e filha contra mãe, sogra contra nora e nora contra sogra (Lc 12, 49-53).
O que ele quer dizer com isso? O versículo 57 oferece uma interpretação plausível: por que vocês não descobrem o que é certo por vocês mesmos? Por que correm atrás de mim? O filho pensa pela própria cabeça, mas o pai ainda pensa pela cabeça de outros. Daí a confusão. Em grego, o verbo aqui é ‘krinein’:pensar criticamente, julgar de forma independente.
Trata-se de
  • uma capacidade de discernimento que não vem de fora,
  • mas de dentro, da consciência. Para além das imagens transmitidas.
 Penso que esse texto de Lucas faz alusão ao turbilhão de imagens que assaltam a mente de Jesus quando ele entra em contato com muitos de seus conterrâneos, que parecem ficar fascinados com os espíritos maus que rondam pelo mundo,
  • os demônios das sete profundezas subterrâneas,
  • os dragões,
  • as serpentes,
  • os monstros,
  • as maldições,
  • as perturbações assombrosas,
  • as máscaras de chifres ameaçadores,
  • os carrascos,
  • os tiranos do mal,
  • os ‘divisores’ (diabolos),
  • as turvações,
  • as perturbações,
  • as dissoluções,
  • as tiranias,
  • a cauda que varre o mundo,
  • os morcegos que chupam a vida,
  • as unhas que arranham todo sinal de vida,
  • as presas enormes,
  • o sol negro,
  • as trevas de Lúcifer (o anjo carregado de levar a luz vira o príncipe das trevas), o adversário, os maus pensamentos, a desordem na consciência humana, a enganação, o demônio infiltrado na história.
Jesus, desde o momento em que manda Satanás ficar calado (Mc 1, 23-28) no episódio na sinagoga de Cafarnaum (o primeiro milagre), desafia imagens que tanto ele como seus ouvintes receberam desde a infância: o Satanás, as forças do mal, os demônios. Jesus vê Satanás ‘cair do céu que nem um relâmpago’ (Lc 10, 17-18). Ele diz: ‘sai, Satanás’ (Mt 4, 10), ‘vai embora, Satanás’ (Mt 16, 23). Não liga para Satanás.
Ao mesmo tempo em que
  • ouve os lamentos do povo,
  • Jesus enxerga a luz,
  • a boa mensagem da luz,
  • o evangelho.
Ele passa por um processo, depois de abandonar os trabalhos com João Batista. Começa a enxergar os anjos, mensageiros de Deus, guardiões da vida, condutores de astros e homens, protetores dos filhos de Deus. Abandona o turbilhão de demônios e ‘sopros imundos’. 
  • Enxerga Miguel, Gabriel, Rafael, os protetores da vida,
  • enxerga os serafins em torno do trono de Deus, como Isaías,
  • descobre os anjos da guarda a proteger as pessoas.
Aparece uma nova visão do mundo, uma boa notícia para os pobres, marginalizados e rejeitados da terra, um evangelho, a conversão de demônios em anjos. O batismo de João está superado, pois fica baseado na falsa premissa da luta
  • entre o bem e o mal,
  • entre a virtude e a maldade,
  • entre os anjos e os demônios.
A nova premissa consiste na conversão de demônios em anjos, da maldade em bondade.
  • Vocês escutaram: olho por olho, dente por dente. / Mas eu digo: não resistam ao mal.
  • Alguém lhe bate na face direita? Ofereça a outra. 
  • Alguém lhe tira a túnica? Dê-lhe também o manto.
  • Alguém o obriga a carregar suas bagagens ao longo de uma légua a pé? Ande duas.
  • Vocês ouviram: ame seu próximo e odeie seu inimigo. / Mas eu digo: ame seu inimigo, reze por quem o persegue. Assim você será filho do Pai que está nos céus.
  • Que mérito há em amar os que nos amam? / É assim que amam os fiscais de impostos. 
  • Ajam como devem agir, assim como seu Pai nos céus age como deve ser (Mt 5, 38-48)
Há de se abandonar João Batista, o profeta das calamidades, e pregar o Reino de Deus, a boa notícia do Reino que vem. A proposta não é mais religiosa, mas humanitária:
Vejam:
  • cegos veem,
  • coxos andam,
  • leprosos são purificados,
  • surdos ouvem,
  • mortos ressuscitam.
Uma boa notícia aos pobres. Feliz aquele que não se escandaliza comigo(Mt 11, 5).
Desaparece o demônio, aparece um Deus que perdoa sempre. O Deus de Orígenes e de outros Padres das primeiras gerações. Jesus se diferencia radicalmente de qualquer religião. Não se baseia
  • no sagrado,
  • na autoridade de uma lei ou tradição,
  • mas na ação libertadora,
  • na ação evangélica do perdão, da misericórdia, do diálogo, da superação das diferenças.
Não se baseia na religião, mas no evangelho. A nova lei é a do amor, exercida a partir da própria consciência do indivíduo guiado pelo mandamento do amor de Deus e do próximo que ‘resume toda a revelação’. Não se trata mais de adorar a Deus, mas de amar o próximo. Nele consiste doravante o absoluto de Deus. O amor torna-se ‘o princípio da salvação’. Não se trata mais de se dedicar a Deus, mas dTe se dedicar ao próximo.
 
Eduardo Hoornaert

terça-feira, 28 de novembro de 2017

Lutero: somos mendigos

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1 Teria sido possível encontrar um acordo quanto às 95 teses de Lutero, mesmo quanto às que são mais claramente de crítica ao Papa:
  • “Pregam doutrina humana os que dizem que a alma voa do purgatório para o céu, mal o dinheiro cai na caixa.”
  • “Porque é que o Papa não esvazia o purgatório, baseado num motivo correcto: um amor santíssimo e a extrema necessidade das almas, em vez de resgatar um número incontável de almas, baseado num motivo bem insignificante: o funesto dinheiro para a construção de uma igreja?”
  • “Porque é que o Papa, que é hoje mais rico do que o mais rico Crasso, não prefere pelo menos construir a Basílica de São Pedro com o seu próprio dinheiro, em vez de fazê-lo com o dos fiéis pobres?”
Aliás, ele mandara as teses ao bispo de Mainz e só porque não recebeu resposta é que as tornou públicas.Infelizmente, o próprio papa Leão X,
  • que aos 13 anos já era cardeal
  • e que estava mais preocupado com o poder e o fausto do que com o Evangelho
  • e que não percebeu que se estava numa mudança de época,
  • pensou que tudo se resolvia com a excomunhão do frade alemão.
Não foi assim, e o que é facto é que, como escreveu Viriato Soromenho Marques, “em poucos anos,
  • o que era um protesto aparentemente localizado e sectorial contra um cristianismo ocidental romano, já com frestas mas ainda unificado,
  • transformou-se num poderoso e plural movimento que iria cindir, violenta e definitivamente, não só o cristianismo como a política, a sociedade e a cultura do Velho Continente”.

2 As indulgências foram apenas a ocasião. O que acabou por romper a unidade e pôr em marcha consequências que o próprio Lutero não desejava foi a doutrina luterana dos “sós”:
  • sola fides – só a fé: a salvação dá-se exclusivamente pela fé, sem o contributo das obras;
  • sola gratia – só a graça, sem méritos;
  • sola Scriptura – só a Bíblia, a única autoridade na e para a fé.
Esta concepção punha fim às mediações:dos sacramentos, só o baptismo e a eucaristia eram reconhecidos; o próprio Erasmo de Roterdão, humanista e crítico mordaz da Igreja, recordou a Lutero que, segundo a Bíblia, em ordem à salvação,
  • há a colaboração da liberdade humana;
  • a razão não pode ser excluída da fé;
  • as Escrituras têm de ser lidas sem invalidar a tradição…
Neste quadro, o protestantismo contribuiu de modo decisivo para a secularização/secularismo. Sem mediações, entre
  • um Deus radicalmente transcendente, totalmente Outro,
  • e uma humanidade radicalmente pecadora,
  • ficava um mundo totalmente profano, sem qualquer significado divino, que já não é veículo da graça.
Com o tempo,
  • uma vez que Deus está tão distante do ser humano,
  • pode-se chegar ao seu esquecimento
  • e, no longo prazo, à sua negação.
Assim, a Reforma também está na origem das modernas concepções radicalmente imanentes. É a ironia da história das ideias: uma vez lançadas, podem provocar consequências que de modo nenhum estavam nas intenções dos seus autores e até lhes são totalmente opostas.
Neste contexto, Lutero defendeu a doutrina dos dois Reinos, distinguindo bem
  • a esfera temporal e a esfera espiritual,
  • o reino da política e o reino da salvação,
de tal modo que a liberdade cristã fica separada da transformação social deste mundo.
Assim, dizer que a liberdade trazida por Cristo é incompatível com a servidão, como afirmavam os camponeses rebeldes em Os Doze Artigos, “significa tornar a liberdade cristã uma liberdade completamente carnal”. “O Evangelho não tolera nunca a rebelião.” Subordinou a Igreja à autoridade do Estado, de tal modo que o príncipe ou o senhor pode ser “o funcionário da justiça de Deus e o servidor da sua ira.”
A liberdade e a igualdade cristãs não são para este mundo. Assim, Lutero, que, num primeiro momento, pedira aos príncipes
“Por amor de Deus, cedei um pouco face ao furor dos camponeses”, pouco tempo depois, com base na “matança de Weinsberg”, pôs-se completamente do lado dos príncipes e “contra os camponeses, ladrões e assassinos; nisto, molho a minha pena em sangue: apelo aos príncipes que matem os ofensivos camponeses como cães raivosos, que os apunhalem, os estrangulem e destruam como melhor puderem…
Não quero opor-me às autoridades que, podendo e querendo fazê-lo, reprimam com todo o vigor e castiguem esses assassinos sem oferta prévia de alcançar um acordo equitativo, mesmo quando essas autoridades não forem tolerantes em relação ao Evangelho”.
Thomas Münzer, que fora discípulo de Lutero mas se distanciara dele por causa da opressão a que estavam sujeitos os camponeses,
  • não se contentava com a libertação interior
  • e queria estabelecer o Reino de Deus mediante uma ordem social justa.
Na batalha de Frankenhausen, em 1525, foi feito prisioneiro, torturado e decapitado. Os conflitos causaram a morte a mais de cem mil camponeses.

3 São incontáveis na história os efeitos positivos de Lutero como testemunha de Cristo e do Evangelho:
  • a leitura e a difusão da Bíblia,
  • a tomada de consciência pelos cristãos do sacerdócio universal e da sua radical igualdade em Cristo,
  • a reforma da(s) Igreja(s),
  • a afirmação da subjectividade e da liberdade,
  • a educação, a promoção da mulher,
  • a força da música na liturgia,
  • os seus catecismos…
Mas há ainda outra dimensão marcante nas suas contradições:
  • depois de ter defendido uma coabitação amigável com os judeus,
  • fez um volte-face e pediu, em 1543, a sua expulsão, o confisco dos seus bens, o incêndio das sinagogas:“Primeiro, incendeie-se as suas sinagogas e cubra-se de terra e sepulte-se o que recusar arder, a fim de que ninguém possa ver o seu mínimo traço por toda a eternidade.”

4 Lutero morreu na sua cidade natal, Eisleben, em 1546, invocando Jesus Cristo. Numa nota escrita na véspera da morte estão estas palavras: “Wir sind Bettler, das ist wahr” (somos mendigos, é verdade).

terça-feira, 7 de novembro de 2017

100 ANOS DA REVOLUÇÃO SOCIALISTA RUSSA

#100AnosDaRevolução | Um sonho de outubro

#100AnosDaRevolução | Um sonho de outubro
Por Gustavo Souto de Noronha – Economista do Incra e colunista do Brasil Debate
“Nesse último período, em que lutas finais decisivas são iminentes no mundo inteiro, o problema mais importante do socialismo, a questão candente da atualidade era, e é, não esta ou aquela questão de detalhe da tática, e sim a capacidade de ação do proletariado, a energia revolucionária das massas, a vontade do socialismo de chegar ao poder. Nesse sentido, Lenin, Trotsky e seus amigos foram os primeiros a dar o exemplo ao proletariado mundial, e até agora continuam sendo os únicos que, como Hutten, podem exclamar: ‘eu ousei!’.” (Rosa de Luxemburgo)
Em outubro de 1917, pelo calendário juliano, ou novembro, pelo calendário gregoriano, os bolcheviques iniciaram o que John Reed chamou de 10 dias que abalaram o mundo, abalos que são sentidos até hoje. Se fomos acordados dos sonhos do outubro vermelho com o colapso da União Soviética, a sociedade capitalista que conhecemos hoje foi moldada sob a ameaça daquele socialismo realmente existente. O estado de bem-estar social ou mesmo a macroeconomia keynesiana e suas preocupações com o emprego só foram possíveis e viabilizados num contexto da ameaça do socialismo soviético, uma face humana do capitalismo fazia-se necessária para evitar o comunismo.
O fim da utopia construída desde aquele fatídico outubro trouxe de volta a forma mais violenta do capitalismo de livre mercado, o neoliberalismo. Vivemos tempos difíceis, tempos de crise financeira, que na verdade vem se mostrando uma das mais profundas e resilientes crises econômicas do capitalismo, cujo futuro é imprevisível. Não nos parece possível uma saída da crise sem a reversão do modo de ser da sociedade capitalista, o crescimento econômico como equação linear não resolve. Mas a crise não é apenas econômica, é alimentar, energética e ecológica. É uma crise do atual sistema político e econômico.
Não por outra razão que o dilema socialismo ou barbárie, de fundamental importância para qualquer discussão política desde o século XIX, está mais atual que nunca. Ou melhor, “barbárie se tivermos sorte”, nos atualizou Mészaros. Para evitar a barbárie, que, aliás, já se abate em várias partes do mundo, há que se agregar a defesa do planeta como parte indissociável da luta pelo socialismo. E, retomando Mészaros, “a alternativa socialista não é só apenas possível, mas também necessária para a sobrevivência da Humanidade”.
A construção do socialismo, no entanto, requer que façamos um balanço do que foi aquele outubro. Onde erramos naquela aventura onírica? As análises mais simplórias normalmente simplificam no espantalho do stalinismo as razões para o fracasso de tão inovadora experiência. Entretanto, a forma como foi construída a própria crítica do capitalismo por Lenin talvez ajude a melhor compreender como se deu esse processo. Lenin criticava a partir do ponto de vista do trabalho proletário, entretanto, Marx de forma muita mais radical centrou fogo na crítica ao trabalho proletário.
A sociedade construída pelo leninismo foi uma sociedade de exaltação do trabalho proletário e não a sociedade emancipada dos escritos de Marx. A consequência desta interpretação é que houve uma mudança radical no modo de distribuição, mas ainda sem se alterar o modo de produção. Era uma sociedade mais justa, mas sem ter conseguido se livrar da forma mercadoria e, por consequência, manteve em seu seio uma forma atrofiada de capital.
Não se quer aqui cobrar de Lenin uma interpretação para além do seu próprio tempo, é sabido que os bolcheviques esperavam a revolução (que não veio) na Alemanha e no resto da Europa de forma a consolidar um novo paradigma.
Todavia, ao não romper com o modo de produção do capital, pavimentou-se o caminho para a degeneração que convencionou-se chamar de stalinismo. Atribuía-se a um indivíduo a responsabilidade por todos os erros do socialismo real, não que isso absolva Stalin de seus erros, mas a individualização da culpa em sua figura impede a crítica de fundo aos erros da experiência soviética. A própria forma como foi alicerçada a crítica ao capital pelos bolcheviques explica melhor a derrota do sonho de outubro, uma crítica do ponto de vista do trabalho e não ao trabalho proletário.
Uma das citações mais famosas de Lenin diz que “sem teoria revolucionária, não há prática revolucionária”, é necessário uma nova teoria revolucionária que seja também uma crítica profunda, nos termos de Marx, ao capital para então superá-lo. Gramsci, entretanto nos colocava que hoje temos Estado e sociedade civil bastante organizados e que para essa superação de nada adianta a guerra de movimento das estratégias revolucionárias clássicas. Tornou-se necessário, portanto, resgatar a guerra de posição de forma a cercar e sitiar o Estado burguês com uma contra-hegemonia para construção de um novo tempo. Será preciso superar o capital, o estado burguês e a própria política nos termos que conhecemos. Esta tarefa não será cumprida sem a ousadia de “Lenin, Trotsky e seus amigos” como nos apontou Rosa de Luxemburgo. Que venham outros sonhos de outubro!

domingo, 5 de novembro de 2017

Bispos brasileiros defendem a abertura a padres casados


 O Sínodo da Amazônia, em 2019, provavelmente inserirá o tema-tabu que, há anos, foi rejeitado pelo Vaticano: a possibilidade de ordenar os viri probati para suprir a falta de sacerdotes em muitos lugares inacessíveis, dentro da imensa região americana. 
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Franca Giansoldati– 03 Novembro 2017
Imagem: Papa Francisco e bispos da região, preocupados com a Amazônia
Na pilha de dossiês que pesam sobre a escrivaninha do Papa Francisco em Santa Marta, jaz uma proposta tão inovadora a ponto de ser potencialmente anunciadora de mais dores de cabeça para o pontificado.
Trata-se da questão dos padres casados.
A reportagem é de Franca Giansoldati, publicada no jornal Il Messaggero, 02-11-17

Desta vez, da forma como as coisas estão avançando, o tema-tabu parece realmente destinado a entrar na agenda sinodal de 2019. Todos os bispos da região panamazônicaforam convocados a Roma para discutir e identificar “novos caminhos para a evangelização” dessa vastíssima região da América Latina, onde a Igreja sofre por causa do escasso número de padres à disposição.
Há muito tempo, as vocações no Brasil não conseguem mais enfrentar as exigências territoriais de centros habitados disseminados pela floresta, muito longe e difíceis de alcançar.

cardeal Claudio Hummes, grande eleitor do Papa Bergoglio (a ele é que se deve o nome de Francisco, sugerido ao recém-eleito depois do conclave) está decidido a encontrar uma solução viável e definitiva para enfrentar a emergência endêmica dos sacerdotes no território.
O projeto do cardeal, que também é presidente da Comissão Episcopal para a Amazônia, é de fazer com que seja aprovada no Sínodo de Roma a possibilidade de ordenar viri probati, homens casados e de grande fé, capazes de administrar espiritualmente uma comunidade de fiéis.
Hummes continua repetindo que o celibato não pode mais ser considerado uma espécie de dogma e que, portanto, poderia ser discutido em Roma, durante o Sínodo.
Nestes dias, o secretário da Comissão para a AmazôniaDom Erwin Kräutler, até alguns meses atrás bispo da Prelazia do Xingu, também manifestou publicamente a urgência de dar a essa região a possibilidade de ordenar homens casados e, outra hipótese, proceder a ordenação de diaconisas.
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Foto: sertão baiano
O assunto teria sido abordado diretamente com Bergoglio, que, segundo a agência austríaca KNA, disse: “Escute os bispos e diga-lhes que façam propostas concretasa e corajosas”.
Superar as barreiras existentes na Igreja não será fácil, mas Kräutler está confiante e conta que, na Amazônia, muitos fiéis, não tendo mais um pároco, deixam-se atrair por outras confissões ou pelas seitas.
Assim, o Sínodo sobre a Amazônia – agendado para daqui a dois anos, mas já em vias de preparação –,
  • além de temas ligados à defesa ambiental,
  • ao risco do desmatamento do maior pulmão verde do planeta,
  • à proteção dos povos indígenas,
  • provavelmente inserirá o tema-tabu que, há anos, foi rejeitado pelo Vaticano: a possibilidade de ordenar os viri probati para suprir a falta de sacerdotes em muitos lugares inacessíveis, dentro da imensa região americana.
No Brasil, a maioria dos bispos, sobre os viri probati, gostariam de ter uma palavra clara. Naturalmente, o interesse do Sínodo continua sendo o futuro da Amazônia, onde a carência vocacional poderia se tornar dramática. A possível decisão do papa em favor dos viri probati ad experimentum para a região, porém, poderia abrir um precedente e induzir, no futuro, outros episcopados interessados em avançar, como a Alemanha, a Bélgica, a Áustria, a República Tcheca, e lançar um debate interno.
Na prática, o teste brasileiro poderia desencadear um sistema secular e dar origem a oposições contrárias à inovação. Em suma, problemas à vista para o Papa Francisco.

Franca Giansoldati


sexta-feira, 3 de novembro de 2017

Afinal, existe mesmo rombo na Previdência?

“Temos que nos perguntar: a quem interessa essa reforma? Aos bancos, aos planos de previdência privada. É um rombo produzido para atender a esses interesses” – Prof. Denise Gentil
Mariana Schreiber – Da BBC Brasil em Brasília – 
Segundo cálculos da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Anfip) citados pela CPI, a Seguridade Social apresentou em média saldo anual positivo de R$ 50 bilhões entre 2005 e 2016.
O único saldo negativo desse período, de R$ 57 bilhões, ocorreu no ano passado -segundo a Anfip isso foi reflexo da crise econômica, que reduziu a arrecadação de tributos,mas trata-se de uma situação conjuntural que será revertida com a retomada da economia.
Vencidas as denúncias criminais que ameaçavam seu mandato, o presidente Michel Temer concentra agora seus esforços em aprovar a polêmica reforma da Previdência.
Na semana passada, justamente quando a Câmara mandava para a gaveta o pedido para processar o presidente, no Senado, a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Previdência imprimia uma derrota ao governo ao aprovar por unanimidade um relatório que nega a existência de deficit nas contas da aposentadoria e rejeita a necessidade de mudanças.
“A reforma não anda (no Congresso). Como é embasada em premissas falsas, conforme a CPI comprovou, ela vai empacar por si só”, disse o senador Hélio José (Pros-DF), autor do relatório baseado em uma investigação de seis meses.
Essas supostas premissas falsas podem ser resumidas em três itens principais:
  • inclusão de servidores federais (civis e militares) no rombo,
  • projeções “exageradas” de envelhecimento da população
  • e má gestão dos recursos.
O ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, reagiu dizendo que o rombo na Previdência é inquestionável. O governo considera essencial a reforma para tirar as contas públicas do vermelho. “Não é momento para demagogia”, criticou.

Mas afinal, há ou não deficit? A BBC Brasil ouviu autoridades e especialistas e explica abaixo os principais argumentos dos dois lados dessa discussão.

1) O que deve entrar nessa conta?

Quando se fala em rombo, o primeiro ponto de discórdia é o que deve entrar nesta conta.
O governo aponta para um desequilíbrio tanto no regime que atende os trabalhadores do setor privado (INSS), quanto no de aposentadoria dos servidores públicos.
No caso dos servidores federais, as aposentadorias e pensões de 982 mil pessoas (civis e militares) registrou um deficit em 2016 de R$ 77,2 bilhões. Já o INSS, que atendeu cerca de 27 milhões de aposentados e pensionistas no ano passado, teve deficit de R$ 149,7 bilhões.
A diferença fica mais clara quando se calcula o tamanho do deficit por pessoa nos dois regimes. No INSS, equivale a R$ 5,5 mil por pessoa, enquanto entre servidores federais civis e militares chega a 77,2 mil.
A conclusão da CPI se baseia no argumento de economistas que defendem que os regimes de aposentadoria dos setores público e privado
  • são diferentes
  • e devem ser tratados separadamente.
Além disso, sustentam que, segundo o artigo 194 da Constituição Federal, as contas da Previdência dos trabalhadores privados devem ser contabilizadas dentro da Seguridade Social, que inclui ainda
  • as receitas com outras contribuições sociais
  • e despesas com Saúde e benefícios como o Bolsa Família.

    Confira alguns recursos que deveriam ir para a Previdência e não vão em sua integralidade:

    – R$ 201 bilhões – Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins)– R$ 60 bilhões – Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido (CSLL)– R$ 53 bilhões – PIS-Pasep– R$ 157 bilhões – Isenção da contribuição Patronal para Previdência (desonerações)– R$ 64 bilhões – Desvinculação de Receitas da União (DRU)                                                    Dados: Sismmac

Segundo cálculos da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Anfip) citados pela CPI,
  • a Seguridade Social apresentou em média saldo anual positivo de R$ 50 bilhões entre 2005 e 2016.
  • O único saldo negativo desse período, de R$ 57 bilhões, ocorreu no ano passado -segundo a Anfip isso foi reflexo da crise econômica, que reduziu a arrecadação de tributos,mas trata-se de uma situação conjuntural que será revertida com a retomada da economia.
Para chegar a essa cálculo, a Anfip
  • desconsiderou a aplicação da DRU (Desvinculação de Receitas da União),
  • mecanismo que permite ao governo usar 30% das receitas da Seguridade Social para outras despesas.

Já o governo estima resultados muito diferentes para o mesmo período.
Segundo os dados do Ministério da Fazenda, a Seguridade Social
  • registra deficit há muitos anos
  • e o rombo chegou a R$ 243 bilhões no ano passado.
A grande diferença nos cálculos é que o governo inclui nessa conta o impacto da DRU e também o deficit da aposentadoria dos servidores públicos.
Segundo o procurador do Tribunal de Contas da União Júlio Marcelo de Oliveira, a DRU (R$ 92 bilhões em 2016) na prática é quase toda usada para cobrir o rombo da Previdência do setor público.
“A discordância central é sobre a metodologia para apurar se há deficit. Olhar o resultado global da seguridade não significa que não existe rombo. Na prática, isso tira recursos da saúde e assistência social”, diz Oliveira.
“Não se trata de contabilidade heterodoxa. É o que a Constituição Federal manda”, rebate o presidente da Anfip, Floriano Martins.
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Grandes devedores da Previdência. Imgem: Sismmac

2) O deficit do setor público está “equacionado”?

Para críticos da CPI da Previdência, o relatório final joga o rombo do regime público para debaixo do tapete. Eles ressaltam que as aposentadorias pagas aos servidores são bem mais altas que as recebidas pelos trabalhadores da iniciativa privada. Dessa forma, esse deficit, coberto pela receita de impostos, significa uma transferência de renda de toda a sociedade para setores que já ganham mais.
Segundo o Ministério do Planejamento,
  • a média paga aos inativos do Poder Executivo em 2016 foi de R$ 7.620.
  • Já o Poder Judiciário, pagou em média R$ 22.245,
  • enquanto os aposentados do Poder Legislativo receberam em média R$ 28.593 por mês.
  • No INSS, por sua vez, o benefício médio está em R$ 1.287.
Questionado sobre a falta de recomendações da CPI para reverter o rombo do regime público, o senador Hélio José disse à BBC Brasil que a previdência dos servidores “já está equacionada pelas reformas anteriores”, adotadas desde os anos 90.
O teto das aposentadorias de quem foi contratado depois de 2013, por exemplo, é igual ao do INSS (hoje em R$ 5.531,31). Quem quiser receber mais precisa aderir a um sistema de previdência complementar.
A questão é que, como essas regras só valem para novos funcionários, seu impacto sobre o Orçamento vai demorar décadas. As projeções do governo federal indicam que o rombo na previdência dos servidores civis da União continuará crescendo até 2048, ano em que atingirá R$ 268,6 bilhões. Apenas a partir daí o deficit deve começar a recuar, chegando a zero no final do século.
“O atual sistema concentra renda”, crítica o economista Nelson Marconi, professor da FGV-SP.
Por outro lado, os dados mostram uma estabilidade desse rombo em relação ao PIB (Produto Interno Bruto, somo de toda a riqueza gerada pelo país) no patamar de 0,6% nos últimos anos, com pequenas variações. Para a economista Denise Gentil, professora da UFRJ, uma das principais acadêmicas a negar a existência do deficit da Previdência, esse é o indicador que importa.

 

ImagemNilma Paulo

3) O problema é de má gestão?

Outro argumento do relatório da CPI é que o rombo apontado pelo governo seria problema de má gestão das contas da Previdência.
O documento ressalta que
  • houve um grande volume de descontos nas contribuições previdenciárias concedidas nos últimos anos, como a desoneração da folha, que visava evitar o desemprego,
  • mas acabou mostrando pouco resultado nesse sentido.
  • Além disso, o governo dá também isenções a alguns setores, como pequenas empresas e entidades filantrópicas. A Receita Federal estima que essas desonerações significam menos R$ 65 bilhões em arrecadação neste ano.
  • Além disso, o relatório da CPI também destaca o grande volume de dívida previdenciária –cerca de R$ 450 bilhões de contribuições não pagas pelas empresas. Segundo a Procuradoria da Fazenda Nacional, no entanto, somente R$ 175 bilhões correspondem a débitos recuperáveis, já que muitas das empresas com dívidas são falidas.
À BBC Brasil, o secretário da Previdência Social, Marcelo Caetano, reconhece
  • ser importante acelerar os processos de recuperação dessas dívidas
  • e a necessidade de rever desonerações, mas diz que isso não resolve o problema da Previdência no longo prazo, já que o processo de envelhecimento da população manterá as despesas com aposentadoria em alta.
“Recuperar dívidas e reverter desonerações são um paliativo, afirmou.
 Denise Gentil diz que o problema maior é de má gestão de política econômica.
Na sua visão,
  • a “agenda neoliberal” adotada pelos governos nos últimos anos, como corte de investimentos e juros altos,
  • deprimiu o crescimento, impactando diretamente a arrecadação de impostos, inclusive a receita da Previdência.
“Temos que nos perguntar: a quem interessa essa reforma? Aos bancos, aos planos de previdência privada. É um rombo produzido para atender a esses interesses”, argumenta a professora.
Floriano Martins reforça o argumento: “Se tiver crescimento econômico, a Previdência some das manchetes de jornal”,diz.

4) Temor exagerado com envelhecimento?

A CPI também acusa o governo de prever um envelhecimento exagerado da população.“Ao longo deste relatório é possível verificar a inconsistência de dados e de informações anunciadas pelo Poder Executivo, que desenham um futuro aterrorizante e totalmente inverossímil”, diz o documento.
O relatório cita estudo realizado por Gentil e outros economistas. Ele diz, por exemplo, que o governo
  • faz suas projeções com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) de 2014
  • em vez de usar os dados do Censo de 2010, que seriam mais completos.
Ambas são pesquisas do IBGE
  • enquanto o Censo vai a todos os domicílios do país a cada dez anos, com um conjunto menor de perguntas,
  • Pnad faz levantamentos amostrais, mas com questionários mais amplos.
Gentil afirma que fez projeções com base no Censo que indicam um crescimento menor da população idosa, o que resultaria numa evolução mais lenta dos gastos da Previdência.
Outros especialistas em dados demográficos e projeções ouvidos pela BBC Brasil discordaram das conclusões da professora. “O envelhecimento populacional no Brasil é real e é um dos mais velozes do mundo”, afirma o demógrafo José Eustáquio Alvez, professor da Escola Nacional de Ciências Estatísticas do IBGE.
Já o especialista em projeções previdenciárias Luís Eduardo Afonso, professor da USP, disse à BBC Brasil que o cálculo do governo pode ser melhorado, mas considerou que
  • algumas premissas adotadas, como a evolução da produtividade do trabalhador brasileiro,
  • estão, na verdade, otimistas demais.
À BBC Brasil, o Ministério da Fazenda negou que use apenas dados da Pnad em suas projeções. O órgão afirmou que considera em seu modelo “a evolução das quantidades absolutas de pessoas por sexo e idade ao longo do tempo, que são extraídos das matrizes populacionais do IBGE (projeções até 2060 baseadas no Censo)”.
Depois disso, “para fins de modelo de projeção previdenciária, aplicam-se taxas obtidas a partir da Pnad (taxas de urbanização, de ocupação, entre outras) às quantias absolutas de população do IBGE”.
O IBGE, por sua vez, disse que seus “métodos demográficos estão em consonância com as recomendações da ONU”.

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